(Entrevista realizada pala Revista Veja
com o psicólogo Stanton Samenow, veiculada na edição de 6 de novembro de 2013)
De seus 72 anos, o
professor Stanton Samenow passou os últimos 43 frente a frente com criminosos.
Depois que eles cometiam delitos, Samenow gastava dezenas de horas em conversas
para entender qual o raciocínio por trás da atitude, como cada um enxergava
seus atos e lidava com as suas consequências. Na década de 70, o psicólogo
escreveu dois livros que se tornaram marco sobre um tema até hoje crucial para
a criminologia: como pensam assaltantes, assassinos e psicopatas. Seu trabalho,
causou controvérsia por ir contra o senso comum da época e mostrar que a
pobreza e as condições precárias influíam pouco na condução de alguém para o
mundo do crime. Samenow, que já foi consultor do FBI, continua a prestar
assessoria a tribunais americanos. A seguir, a entrevista que deu a VEJA, por
telefone:
O
senhor diz que o comportamento criminoso é uma escolha. Por quê?
Não é uma escolha apenas, é uma série delas. Para quem opta pelo crime como
caminho de vida, essas escolhas começam a ser feitas bem cedo, quase sempre.
Por exemplo: as pessoas mentem, adultos e crianças. Mas os futuros criminosos
não mentem apenas para escapar de situações embaraçosas ou exagerar seus
feitos. Mentem porque obtêm uma sensação de poder com isso. Mentir acaba se
tornando uma escolha, e parte do seu comportamento. É assim em vários outros
aspectos. Mais um exemplo: crianças pequenas pegam brinquedos umas das outras,
batem-se e beliscam-se, mas aprendem, normalmente até os 5 anos de idade, que
machucar os outros é errado. Número 1, porque não querem ser machucadas também.
Número 2, porque serão punidas se forem pegas fazendo o que sabem ser errado. E
número 3, e o mais importante, porque desenvolvem uma sensibilidade em relação
ao sofrimento das outras pessoas. Já o futuro criminoso sente prazer em
machucar os outros, e não só fisicamente. Coisas que qualquer um pode fazer,
ainda mais quando se é novo e não se sabe distinguir o certo do errado, os
criminosos continuam a fazer durante toda a vida. Eles simplesmente não
incorporam o que se tenta ensinar-lhes. Para eles, “ser alguém” é ser o centro
das atenções. É a vida como uma estrada de mão única – e o único sentido
possível é o deles. Todos gostamos que as coisas sejam como queremos, mas
aprendemos que não temos controle absoluto para além de nossas próprias ações.
É um modo muito especial de pensar, que se desenvolve ao longo do tempo.
Sua
descrição de um criminoso aproxima-se da de um psicopata. Qual a diferença
entre eles? Não é propriamente uma diferença. Existe
uma escala, como no caso da ansiedade e da depressão. Os que são chamados de
“psicopatas” seriam os ocupantes do último degrau dessa escala. Mas não acho
que o rótulo seja importante, são todos criminosos. O que é relevante é a
presença de um padrão de pensamento que leva a um comportamento criminoso.
Persiste
uma crença de que o crime é reflexo da ausência de oportunidades, um produto do
meio. Qual a sua opinião sobre isso? Muitos criminologistas
e sociólogos discordam, mas ao longo dessas quatro décadas de entrevistas com
criminosos cheguei à conclusão de que o ambiente tem uma influência
relativamente pequena sobre o crime. Em lugares muito pobres, com a presença de
gangues e alto índice de criminalidade, há mais tentações, sem dúvida. Se armas
e drogas estão ao alcance da mão, cometer delitos é mais fácil. Nos lugares em
que a presença do Estado e da polícia é quase inexistente, é claro que a
sensação de que se pode cometer um crime sem ser punido também é mais forte.
Mas não podemos dizer que a maioria dos pobres se torna criminoso, isso não é
verdade. O que podemos dizer é que todo criminoso – não importa se rico ou
pobre, negro ou branco, educado ou analfabeto – tem uma forma semelhante de
pensar. A questão é como as pessoas lidam com o que a vida lhes oferece. Na
maioria esmagadora dos casos, uma pessoa que vem de uma vizinhança pobre, tem
uma família desestruturada e poucas oportunidades não envereda pelo caminho do
crime. Há um caso que eu sempre cito. O pai e os dois irmãos de um rapaz
estavam na prisão. A tentação para o crime se encontrava na porta de casa.
Perguntei: por que você não seguiu esse caminho? Ele respondeu que não estava
interessado – que olhou ao redor e viu como seus parentes acabaram, como
estavam as pessoas a que eles haviam prejudicado, e decidiu que queria ser
diferente.
Mas
o que leva a essas escolhas? Essa é uma pergunta que
eu não sei. E não acho que alguém saiba. Por que em uma mesma família alguém
faz uma escolha errada e outro não? Não sei. A neurocriminologia começa a
investigar se há diferenças genéticas ou na estrutura e funcionamento do
cérebro que podem definir essas opções. Por enquanto, os resultados têm um
alcance limitado. A questão de por que alguém se torna um criminoso pode ser
comparada a algumas formas de câncer. Não sabemos quais os motivos que levam os
tumores a se desenvolver. Mas sabemos como fazer para detectá-los e trata-los,
de modo a evitar que matem o paciente. Não é um destino. Da mesma forma, também
não sabemos o que leva alguns indivíduos a pensar como um criminoso – qual é a
origem, ou a causa, dessa distorção. Mas nós precisamos entender como funciona
esse padrão de pensamento. Como os criminosos tomam decisões e como veem seus
resultados. Assim, ficamos mais bem posicionados para decidir o que fazer com
eles. Há pessoas que representam um perigo tão grande que precisam ser
confinadas, e outras que podem ser trabalhadas para viver em sociedade.
Gary
Becker, prêmio Nobel de Economia em 1992, disse que os criminosos pesam as
vantagens e as desvantagens de cometer um crime, como a probabilidade de ser
pegos em contraposição aos lucros que auferiram com seu crime. Concorda? Sim.
Vamos falar de dois tipos de crime. Primeiro, o premeditado. Ocorre quando os
criminosos sabem diferenciar o certo do errado e também que podem ser presos ou
mortos. Mas conseguem isolar esses medos, com a certeza de que vão se safar, e
levam o crime adiante. Agora vamos pensar no outro tipo, o crime que é cometido
no “calor do momento”. Parece um impulso, mas há uma racionalidade por trás
dele. Pensemos no caso de um homem que teve uma separação muito complicada, foi
ver a ex-mulher para assinar alguns documentos e acabou matando-a. Parece um
surto, certo? Mas, depois de doze horas de conversa com ele, descobri que já
havia pensado muitas vezes em matá-la, mesmo quando era casado. Veio a
oportunidade, ela estava sozinha, ele pegou uma faca e a assassinou. Então, é
verdade que ele não premeditou essa situação, mas já a havia imaginado
mentalmente. Não existe isso de um crime vir “do nada”.
O
senhor diz que uma das características da mente criminosa é a incapacidade de
se colocar no lugar do outro. Como isso resulta em crime? Essa
incapacidade é uma das características da mente criminosa, mas o que resulta no
cometimento do delito é um conjunto delas. Em primeiro lugar, o criminoso se
enxerga como alguém com um poder total sobre os outros. Por isso, é
hipersensível a qualquer coisa que arranhe essa imagem. Se alguém falar conosco
num certo tom arrogante, por exemplo, provavelmente não vamos dar muita
importância. Mas, para o criminoso, isso significa que a pessoa o afrontou. E
ele vai provar que isso não se faz. É assim em toda situação. É por isso que os
criminosos estão sempre nervosos: esperam que os outros se ajustem a eles, que
se submetam. No decorrer do dia, muitas coisas não saem como queríamos, e temos
de lidar com isso. Essa, no entanto, não é a mentalidade do criminoso. O que o
outro fala ou sente não é importante, porque importante é ele. E, se ele
inflige um mal ao outro, a culpa não é dele, mas de quem não agiu como ele
achava que deveria. “Bom, se o sujeito não tivesse olhado para mim daquele
jeito...” É um script que se repete: o assaltante entra numa loja com uma arma.
O vendedor faz um movimento brusco e ele atira. Pego, diz que a culpa é do
morto: “Ele se mexeu, achei que ia sacar uma arma”.
O
senhor diz que escolhas erradas desde muito cedo levam à formação da identidade
criminosa. Existem traços dessa identidade que podem ser identificados na
infância? É muito difícil dizer isso. Há, claro, padrões. E
talvez professores cujos aluno repliquem esse padrão pudessem identifica-los.
Mas não queremos rotular pequenas crianças como criminosos. Talvez na
adolescência, quando esses padrões se intensificam, seja possível trabalhar com
os indivíduos mais problemáticos. Mas isso é muito difícil. Então,
infelizmente, a maioria que eu entrevistei já estava na cadeia. E eu só pude
fazer isso porque na prisão é possível ter a atenção delas. Antes disso, elas
sempre acham que vão se safar.
Em
relação aos criminosos presos, o senhor fala em “habilitação”, não em
reabilitação. Por quê? Reabilitação significa restaurar alguém
ou algo para que retorne a um estágio anterior construtivo, como uma casa velha
que passa por uma reforma ou uma vítima de infarto que se recupera. Mas, no
caso desses indivíduos criminosos, não havia nada antes. Nada, portanto, que
possamos reabilitar. Temos de construir do zero: habilitar.
E
como isso funciona? O que tento fazer é forçar o criminoso
a se ver como ele é. Primeiro, ele tem de compreender o raciocínio que o levou
a cometer aquele crime. Em seguida, tem se dar conta do mal que causou. A
partir daí, tem de entender que as pessoas não pensam como ele e que é
necessário mudar o modo como relaciona com o mundo. Tem de deixar de se ver
como o centro de tudo e aprender que há limites para suas vontades e
consequências para seus atos.
Quando
o senhor se refere a criminosos, parece que está falando de alcoólatras em
tratamento. Há semelhanças? Sim. O que se diz é
que, uma vez alcoólatra, sempre alcoólatra. Você tem de se manter sóbrio para
não arriscar a pôr tudo a perder. Da mesma forma, uma vez criminoso, sempre
criminoso. Não é que a pessoa vá sempre cometer delitos. O que ocorre é que ela
tem dentro de si a inclinação para repetir o padrão de pensamento que resulta
no cometimento de crimes. Por isso, tem de estar sempre vigilante, sempre com
uma atitude de autocrítica. É o que tentamos ensinar.
Mas
esse método requer especialistas com muita experiência e disponibilidade para
lidar com criminosos individualmente. O que fazer em sociedade como a
brasileira, que tem 550 000 presos? Eu gostaria de ter a
resposta. Não acredito que a psicologia seja uma cura. Mas há criminosos que
podem ser tratados da maneira como descrevi. Sem levar em conta o modo como
esses criminosos pensam, há muito pouco esperança de que eles mudem. Ficarão
indo e voltando na porta giratória da prisão.
Penas
mais duras surtem mais efeito na repressão ao crime?
Há duas respostas. Primeiro, não dá para saber. Até porque as pessoas que
deixam de cometer crimes por receio de penas altas nunca serão pegas. Mas, se
para o criminoso é difícil saber se faz diferença, com certeza faz para a
sociedade.